O problema com as vazões de referência
Em textos anteriores nós comentamos um pouco sobre disponibilidade hídrica. O objetivo foi esclarecer um pouco o conceito e sua importância, bem como as dificuldades na obtenção de dados confiáveis que nos permita quantificar o volume disponível de água escoando em um rio. Quem tiver interesse, segue os links para acesso:
- Um negócio chamado Disponibilidade Hídrica;
- Sobre o desafio de quantificar a disponibilidade hídrica
Nesse texto vamos discutir sobre indicadores, quantificação e o processo de tomada de decisão referente a disponibilidade hídrica para fins de planejamento e gestão de recursos hídricos.
Determinando o número mágico
O hidrograma e sua importância em bacias hidrográficas
Para quem desconhece o tema, o primeiro passo para entender como determinamos a disponibilidade hídrica em um trecho de rio ou bacia hidrográfica é entender o regime de vazões. Também conhecido como hidrograma (ou fluviograma), esse resultado é obtido a partir de um processo que combina o nível medido na seção de um rio e a sua relação entre cota e descarga, também chamada curva-chave. Naturalmente os rios apresentam momentos de maior e menor vazão, sendo comum observar hidrogramas que variam no tempo, apresentando momentos de maior vazão somados a momentos de menor vazão. Do ponto de vista da gestão e planejamento de múltiplos usos em recursos hídricos, essa variação contínua no tempo das vazões impede uma tomada de decisão coerente com a realidade.
A figura abaixo apresenta um exemplo de hidrograma com picos de vazão observado ao longo dos anos. Observa-se uma grande variação dos valores no tempo.
Para detalhar um pouco mais essa problemática, imagine que é necessário que sobre água para todos os indivíduos existentes no ecossistema. Nesse caso, não estamos falando apenas do homem, mas também da natureza (vegetações e árvores em geral, bem como animais como peixes, bois e afins). O tomador de decisão deve considerar que todos querem utilizar a água disponível nos rios, da mesma forma que deve lembrar que dependendo da finalidade do uso, alguns usos podem impedir os outros. Um exemplo prático deste último caso envolve a retirada de água para irrigação em locais onde é necessário captar água para abastecimento humano. Normalmente reservamos água em estruturas de contenção como barragens para termos volume suficiente para captar e poder abastecer cidades. Mas se esta mesma água for utilizada para irrigação, em algum momento podemos nos deparar com um conflito entre usos nobres, mas que disputam um mesmo recurso. É como todos quererem comer o último pedaço da pizza… alguém vai ficar sem!
Curvas de permanência: Resumindo o hidrograma em números
O desafio para a gestão de recursos hídricos é: Como disponibilizar água para todos os usos sem que o recurso falte para alguém? A resposta que foi obtida para esta pergunta veio de estudos e análises estatísticas, sendo nomeada curvas de permanência. Uma curva de permanência é a representação atemporal (portanto uma estatística descritiva) do escoamento em um rio. Ela transforma o hidrograma, que tem as vazões escoando em rios ao longo do tempo, em números fixos. Para facilitar o entendimento, imagine que você calcula a média de custo com energia nos últimos 12 meses. O hidrograma seria algo como o custo mensal com energia, que varia ao longo do ano, e a média será um valor fixo representativo de um comportamento mais provável ao longo do ano.
Na figura abaixo é apresentado um exemplo de curvas de permanência. Observa-se valores menores de vazão relacionados a percentuais maiores.
A partir das curvas de permanência obtidas para diferentes hidrogramas espalhados por uma bacia hidrográfica, é possível determinar vazões que possuem uma probabilidade de ocorrência. Na sua construção, a curva de permanência busca avaliar os valores de vazão que ocorrem por um determinado tempo ao longo do hidrograma. Na prática ela converte o escoamento em rios, com sua característica dinâmica e variada no tempo, em um número que indica quanto de volume escoa naquele trecho de rio com uma certeza razoável. Isso se representa em números como Q90, Q95 e tantos outros que estamos acostumados a ver em estudos hidrodrológicos. Estes números representam o volume escoando no rio em um determinado percentual de tempo. Logo, Q90 é equivalente a vazão que escoa no trecho de rio em pelo menos 90% do tempo. Q95 é equivalente a vazão que escoa no trecho de rio em pelo menos 95% do tempo.
Aqui vai um aviso a quem não entende bem o conceito: O fato de estarmos definindo uma vazão que possui 95% de chance de ser observada no hidrograma não significa que esta vazão em específico aparece no hidrograma 95% das vezes. Como a construção de uma curva de permanência envolve conceitos estatísticos descritivos, a conclusão correta é mais subjetiva, sendo avaliada da seguinte forma:
Uma Q95 equivalente a 10 m³/s significa que, para o hidrograma utilizado na sua construção, a vazão de 10 m³/s é igualada ou excedida 95% do tempo. Ou seja, essa vazão é um limiar de transição, um limite considerado para análise. O hidrograma e as vazões escoando no rio podem ser iguais, maiores ou menores que este valor.
Normalmente, quanto maior for o percentual de tempo que determinada vazão é igualada ou superada num hidrograma, menor é o seu volume disponível. Logo, Q90 ou Q95 seriam vazões com alta frequência de ocorrência em rios mas com pouco volume disponível sendo escoado neles. E aí é onde mora o perigo…
Observação: A curva de permanência é uma ferramenta estatística, logo ela trabalha com probabilidades, valores esperados, não com valores concretos.
Aí é onde está o problema!
Uma vez que hidrogramas, que são processos contínuos no tempo, são convertidos em curvas de permanência, que são descritivos atemporais (sem variações temporais) obtemos indicadores que quantificam a disponibilidade hídrica em rios e bacias hidrográficas. Estes indicadores permitem que tomadores de decisão legislem sobre outorgas e usos da água, normalmente escolhendo vazões mínimas como referência. Por exemplo, é comum vermos que processos de outorga consideram que apenas 50% da vazão Q95 seja outorgada para usos consuntivos. Isto equivale dizer que apenas 50% de uma vazão mínima (Q95) é disponibilizado para usos como irrigação, utilização na indústria e o abastecimento humano.
Por um lado, temos a segurança de que estamos utilizando pouca água do rio, afinal, estamos pegando a metade de um valor que representa o volume escoado no rio com uma frequência elevada. Por outro lado, temos uma variação temporal de volumes (basta relembrar o hidrograma) que permitiria tirar mais água em determinados momentos do ano. Conhecendo estes problemas, algumas dúvidas assombram os tomadores de decisão quando estão realizando o planejamento de curto, médio e longo prazo em bacias hidrográficas:
- Momentos no ano em que a vazão no rio supera a Q95 podem flexibilizar as outorgas e aumentar o consumo tendo em vista que temos mais água disponível para usos?
- Sabendo que a variação existe, é melhor conviver com ela e tomar de decisões que respeitem o ciclo hidrológico de cheias e secas ou devemos regularizar estas vazões por meio de barragens para manter uma disponibilidade hídrica fixa no tempo?
- É possível combinar diferentes usos em diferentes momentos do ciclo hidrológico para que seus usos sejam intensificados durante momentos de cheias e flexibilizados em momentos de estiagem?
- Vale a pena me preocupar com toda esta dinâmica e entender todos os usos ou basta seguir a regra e considerar um valor fixo de referência para não dar muito trabalho?
Finalizando o assunto! (ou não…)
Estas são apenas algumas perguntas que membros de grupos de trabalho e comitês de bacia buscam responder com objetivo de equilibrar os diversos usos existentes para a água numa bacia hidrográfica. Estas dúvidas, bem como diversas outras existentes, são ainda mais difíceis de responder quando colocamos numa perspectiva de futuro, uma vez que dificilmente controlamos todos os elementos do ciclo hidrológico. Podemos ter uma intensificação de eventos de precipitação extrema, aumento da precipitação e consequente aumento nos volumes escoando em rios distribuídos ao longo do ano, estiagens e consequente redução dos volumes escoando, secas severas em regiões úmidas (raro, mas está sendo observado) e assim por diante.
Séries observadas de vazão, que compõem a base de dados para determinação de disponibilidade hídrica, podem mudar dependendo do cenário hidrológico vigente. A hidrologia apresenta uma variação cíclica, como regimes de precipitação se alternando ao longo de décadas e, em alguns casos, mudando de forma significativa devido a ações antrópicas (criação de zonas industriais, por exemplo). Estas ações antrópicas também causam alterações no uso e ocupação do solo, convertendo, por exemplo, coberturas densas formadas por florestas em pasto ou áreas urbanizadas, alterando completamente o regime hidrológico e a distribuição de vazões escoando em bacias hidrográficas. A determinação de valores de referência deve considerar também estes cenários hidrológicos, não sendo possível apenas pegar todos os anos e calcular a curva de permanência, é necessário avaliar se estamos representando os comportamentos hidrológicos corretos.
Cenários de previsão futura, também conhecido como prognóstico em planos de bacia, devem considerar uma infinidade de elementos que impacta a disponibilidade hídrica. Pesar cada cenário e possibilidade e colocar isto numa perspectiva humana, permitindo que a água esteja disponível para todos os usos é uma tarefa complexa e exige, em muitos casos, sorte. Uma vez que não controlamos o futuro, qualquer decisão tomada tem o risco de dar errado, bem como o risco de dar certo, sejamos justos.
Quer saber mais?
Para mais informações, a ANA – dentre outros órgãos – disponibiliza um mapa iterativo com a disponibilidade hídrica superficial no país: Água superficial (snirh.gov.br). O documento técnico de referência com as metodologias consideradas se encontra aqui: NT75_2020.pdf (snirh.gov.br).
Entre em contato e faça parte da nossa rede de clientes e parceiros!
Nossa empresa compreende as necessidades e os objetivos de nossos clientes para seus usos de recursos hídricos. Valorizamos a construção colaborativa dos nossos serviços garantindo que o resultado atenda aos seus desejos. Integrando as necessidades identificadas com as melhores soluções técnicas disponíveis, superamos as expectativas de nossos clientes e fortalecemos nosso relacionamento de longo prazo.
Comments are closed