Por que é difícil instalar um sistema de previsão de cheias?
Em maio de 2024 o Rio Grande do Sul foi atingido pela maior catástrofe climática do Brasil. Um nome forte, mas apropriado para o evento ocorrido.
O evento de 2024 foi precedido por fortes cheias no ano de 2023 (Enchentes de setembro de 2023 – RS.GOV.BR – Portal de Serviços Digitais). Este ano, foi sucedido por novas cheias (Hidrólogo projeta que atual cheia do Guaíba será menor do que as três enchentes anteriores em Porto Alegre | GZH).
O grande problema enfrentado nas cheias deste ano, não é a magnitude das cotas de inundação. Até o momento, são inferiores as vivenciadas em 2024. O problema é que passado um ano após o evento, pouca evolução é sentida pela população.
Planos de contingência e ações emergências foram executadas. Ainda não ficou claro se devido a organização e coordenação bem gerenciada, ou se apenas a resposta rápida de pessoas que experimentaram situações piores no ano passado. Ainda há lacunas no monitoramento hidrológico, nas ações a serem tomadas, na coordenação de realocação de pessoas atingidas e no fluxo de notificações sobre o problema.
Então por que ainda temos a sensação de que não funciona?
A desconfiança da população é notória. Grupos de whatsapp, comentários em publicações, notícias e entrevistas de rádio/televisão mostram uma situação complexa. A população não confia mais nos gestores. Se a defesa civil/prefeitura manda sair de casa, eles desconfiam que serão realocados de forma compulsória (em regiões de menor poder aquisitivo, ops, de maior vulnerabilidade).
A falta de critérios técnicos claros também é notória. Alagamentos devido a falhas nos sistemas de drenagem são confundidos com enchentes devido a rios extravasando sua calha. Apesar da presença e da força das universidades dando respaldo técnico via entrevistas, publicações e etc, ela fica retida a uma parcela da população que acompanha as suas mídias sociais e confia na informação.
Pasmem, a desconfiança é tanta que até os professores estão sendo atacados como pessoas que não entendem de hidrologia (Cientistas criticam proposta de abertura de novo canal na Lagoa dos Patos, no RS #g1 #noticias). Neste ambiente, proliferam soluções mágicas e especialistas que se aproveitam dos problemas gerados pelas cheias para vender serviços.
Neste clima de desconfiança, experimentar novas enchentes com pouco preparo, informação e principalmente notificações claras, nos leva a pergunta:
Por que ainda não há um sistema de previsões de enchentes no Rio Grande do Sul?
O orçamento, existe. A vontade, existe. O conhecimento técnico, existe. Então qual a dificuldade em colocar de pé um sistema que possa ser acessado facilmente por um morador em um bairro vulnerável a enchentes e deixei claro para ele a situação atual, a situação futura, e o que ele pode fazer para melhorar sua situação?
Questões políticas, entrevero entre gestores, ampla concorrência entre equipes qualificadas, gestão de conhecimento, dentre tantos outros motivos alheios questões técnicas, poderiam ser os culpados. Mas aqui, vou ser positivo.
Acreditando que o sistema não está completamente funcional devido a complexidade de sua instalação, abaixo coloco alguns pontos que fazem a construção destes sistemas uma tarefa árdua.
Qual a dificuldade em colocar para funcionar?
A figura abaixo mostra as etapas necessárias para construir um sistema de previsão de enchentes funcional. Os componentes essenciais de um sistema de previsão integrado (enchentes, alertas e respostas) consistem em Fonte de Dados, Comunicação, Previsões, Decisão, Notificação, Coordenação e Ações. Se qualquer um dos componentes não funciona, o sistema é incapaz de gerar bons resultados.
Por exemplo, se dados de precipitação e nível (ou vazão) nos rios não são coletados, ou se os dados são coletados, mas não são transmitidos para o centro de previsões, então a antecedência necessária para tomar decisões está comprometida. Vamos saber que a enchente é crítica durante o evento. É uma situação similar ao ocorrido no Rio Grande do Sul no ano de 2024, onde a sensação que ficou é que todos foram pegos de surpresa pela magnitude do evento.
Por outro lado, mesmo que seja realizada uma “previsão perfeita”, se ela não atinge a população em risco, o sistema de previsões é inútil. E mesmo que a população receba a notificação, se ela é vaga como um “procure abrigo”, o sistema também é inútil.
Esta experiência foi sentida no Rio Grande do Sul durante o ano de 2024, quando alertas emitidos mandavam a população abandonar suas casas e buscar abrigo, sem detalhamento de como fazer isto, quando fazer isto, quem se responsabilizaria pelo seu patrimônio e tantas outras dúvidas que alguém pode ter ao abandonar sua casa as duas da manhã pelo primeiro andar (sim, muitas pessoas foram pegas de surpresa desta forma!).
Na sequência, cada um destes pontos é discutido com maiores detalhes.

Ter os dados necessários disponíveis
É impossível realizar o gerenciamento e controle de inundações sem dados. A operação de uma rede de dados hidrometeorológico é essencial para se operar um sistema de previsão de enchentes de forma satisfatória. Muitas agências realizam estes monitoramentos de forma parcial. INMET, ANA, CEMADEN e algumas outras possuem uma parte dos dados necessários, logo, o centro de previsão integrada deve ser capaz de obter estes dados, processá-los, consisti-los e só então disponibilizar para uso nas previsões.
A abrangência da rede depende do problema que se deseja avaliar. Grandes bacias, com tempo de resposta longo, podem se dar ao luxo de ter poucos postos compondo seu sistema de previsão e alerta. Bacias e rios com resposta rápida, ou seja, onde a chuva logo vira escoamento superficial, devem ter uma abrangência espacial maior na rede de monitoramento.
Aqui é onde a conversa e o bom senso devem ser usados. A rede do INMET tem um objetivo (condições meteorológicas), a rede da ANA tem outro (gestão de recursos hídricos) a do CEMADEN tem outro (alerta de riscos em municípios). Podemos estender esta lista a qualquer outra entidade com dados e dificilmente teremos um operador único responsável por sistemas de previsão de alerta contra enchentes. Por isso, é importante que a abrangência necessária para o sistema de alerta complemente as redes existentes, e que não seja criado um departamento municipal/estadual/federal apenas para realizar este monitoramento.
O uso de sensoriamento remoto é uma realidade que pode ser utilizada como complemento aos dados obtidos em campo. Hoje os radares meteorológicos são uma das principais ferramentas para prever enchentes em diversos países.
Ter os dados disponíveis onde são necessários
Para ser útil aos sistemas de previsão de enchentes, os dados devem estar disponíveis no formato, frequência e qualidade exigidos pelo sistema. Uma vez que os dados são coletados em rios e bacias hidrográficas, ele deve ser transmitido para um local onde possam ser armazenados, acessados e processados.
A estrutura necessária para manter um sistema de armazenamento, acesso e processamento de dados é grande. Estamos falando de data centers com computadores de primeira linha e baixa latência, tornando os dados disponíveis para uso em tempo quase real. Dados podem ser transmitidos via satélite dedicado, links e FTPs, radio, telefone ou utilizando dispositivos compartilhados.
A situação mais comum é termos a união, os estados e as prefeituras atuando em redes não compartilhadas com o setor privado, principalmente devido a problemas de acesso simultâneo, integridade de dados e permissões de acesso. Nestes casos, a coordenação e o compartilhamento de dados deve ser um dos objetivos do sistema de previsão de enchentes, uma vez que estes dados disponíveis por diferentes fontes serão indispensáveis para melhorar a acurácia da previsão com baixo custo para o centro de previsão.
Determinar a quantidade de água no futuro
A determinação de cenários futuros é realizada com a integração entre dados meteorológicos e hidrológicos. Aqui, dois produtos são essenciais para o centro de previsões: Saber quanto de chuva de fato caiu e saber quanto de chuva ainda pode cair. Apesar da chuva ser mencionada diretamente aqui, outros parâmetros como vento (direção e intensidade), temperatura do ar e umidade relativa do ar também são relevantes para o sistema de previsões.
Boas estimativas da precipitação que já caiu até o momento do início da previsão é importante para caracterizar a condição de humidade presente. Esta condição está diretamente ligada aos processos hidrológicos que transformam chuva em vazão. Se tivermos uma previsão elevada de chuva no futuro, num solo seco, a tendência é que grande parte do volume precipitado seja infiltrado pelo solo. O contrário ocorre em condições úmidas, quando o solo encharcado não infiltra, e praticamente toda a precipitação que cai na superfície se transforma em escoamento superficial (e pode gerar enchentes).
Normalmente, precipitação e outras variáveis meteorológicas previstas alimentam um sistema de modelos hidrológicos/hidrodinâmicos que geram resultados sobre vazão e cota prevista nos rios, lagos e zonas costeiras. A equipe de hidrologia recebe um “cenário de melhor compromisso” referente as condições meterológicas previstas. É comum vermos este “cenário” se alterar de um dia para o outro, devido a incertezas e da própria dinâmica atmosférica. Estas previsões geralmente são feitas duas vezes por dia e possuem uma característica importante: Quanto maior o tempo de antecedência (horizonte da previsão) maior a incerteza na estimativa.
A determinação do cenário de melhor compromisso é uma etapa que exige conhecimento especializado para sua definição. Há diversas condições futuras que podem ser previstas, utilizando diversos modelos com diferentes condições climáticas. Logo, analisar toda esta incerteza de cenários futuro é um trabalho que exige conhecimento e bom senso, para que as previsões futuras de fato gerem resultados concretos.
Sistemas de previsão que subestimam ou superestimam os eventos hidrológicos tendem a perder confiança (e investimento) com o passar do tempo.
Decidir estratégias de gerenciamento/controle de inundações
As previsões hidrometeorológicas e hidrodinâmicas realizadas não possuem valor se não atingirem as pessoas necessárias, os chamados “tomadores de decisão”. Para um sistema de suporte a decisões ser efetivo, o planejamento estratégico deve definir as ações necessárias referentes a cada previsão obtida. Em cenários de controle de inundações, são os limites de alerta que antecedem o extravasamento dos rios.
Nesta etapa um cuidado especial deve ser dado pelo centro de previsões, ele precisa gerar informações no formato, qualidade e profundidade que os tomadores de decisão precisam receber. Não adianta ser um texto técnico para um gestor municipal, da mesma forma que não pode ser um texto polido para um coordenador de defesa civil. O centro tem como obrigação fazer sua mensagem ser entendida, e para isto, deve ter relações próximas com os decisores para que seus resultados se transformem em informações que serão utilizadas como base para as decisões futuras.
Notificar Indivíduos e Grupos específicos
As previsões e os alertas devem chegar aos usuários sem atrasos e com tempo suficiente para permitir ações de resposta. Aqui, é importante que o centro de previsão entenda como a população consume essa informação. O melhor método é via rádio? No intervalo de um jogo de futebol? Enviando a comunicação de forma compulsória em celulares?
É relevante também que seja observado como a informação será recebida pelos usuários. Notificações de alerta e previsões de eventos extremos causam antecipação e ansiedade. A depender de como a informação é emitida, o pânico tende a causar mais problemas que a enchente em si. Logo, é importante que o centro de previsão customize seu alerta de forma a ser compreendido pelos usuários sem a escalada da situação.
Estabelecer uma hierarquia de usuários e pessoas-chave, responsáveis por disseminar e melhorar o sistema de alerta é um excelente passo que deve ser realizado. Trazer lideranças locais para fazer parte da solução pode ajudar a criar a sensibilidade necessária para que os alertas sejam efetivos, e não apenas uma nova notificação esquecida no celular.
Ativar planos de contingência e executar ações emergenciais
Esta etapa ocorre quando a notificação e o alerta são para eventos extremos capazes de colocar a vida em risco. Nestes casos, gestores devem possuir planos de contingência que ao serem acionados desencadeiem ações emergenciais que resultem na redução (ou eliminação) do risco a vida humana. A hierarquia citada na etapa anterior, e a condução destes planos com lideranças locais, fortalece as ações a serem tomadas sem atrasos.
Problemas experimentados no Rio Grande do Sul, onde a população não tinha para onde ir, não queria deixar suas casas para não perder suas posses, não sabia como iriam se recuperar, e tantas outras que foram vistas, devem estar sanadas por estes planos.
Conclusão
Sistemas de previsão de enchentes possuem diferentes etapas que devem trabalhar de forma integrada para serem efetivos. A parte técnica de coleta e disponibilização de dados, gerar cenários de previsão e acionar alertas, está amadurecida. Existe o conhecimento, as boas práticas, os investimentos, os métodos e os modelos necessários para conduzir esta parte do sistema. Para muitos, a parte mais importante…
Contudo, um bom sistema de previsão não será efetivo sem que planos de gerenciamento e ações sejam robustos o suficiente para ter a confiança da população. Explorei um pouco desta ideia numa publicação passada (Porque sistemas de alerta falham? – EcoNumérica Engenharia). A construção do sistema com pouca participação, com informações que não são corretamente compreendidas, ações que surtem pouco efeito, tendem a tornar o sistema um “elefante branco”, algo que consome muito dinheiro e gera pouco resultado.
Esta é a maior dificuldade na construção de um sistema de alertas de enchentes (e qualquer outro risco): Podemos ter a melhor tecnologia e os melhores técnicos, mas sem o apoio da comunidade que irá receber as informações, ele será apenas uma tela bonita para mostrar no jornal nacional.
Entre em contato e faça parte da nossa rede de clientes e parceiros!
Nossa empresa compreende as necessidades e os objetivos de nossos clientes para seus usos de recursos hídricos. Valorizamos a construção colaborativa dos nossos serviços garantindo que o resultado atenda aos seus desejos. Integrando as necessidades identificadas com as melhores soluções técnicas disponíveis, superamos as expectativas de nossos clientes e fortalecemos nosso relacionamento de longo prazo.
Comments are closed