Estamos errados ao estimar um CN?

A existência de métodos simples para estimar escoamento em bacias hidrográficas é importante para diversas aplicações de engenharia hidráulica e modelagem hidrológica, como o dimensionamento de estruturas hidráulicas e a estimativa de balanço hídrico.  Quanto mais simples a aplicação do método, mais fácil de conseguir resultados confiáveis e com pouca incerteza associada. Desde sua publicação (em 1956), o método SCS-CN vem sendo atualizado e utilizado para estimar escoamento em bacias hidrográficas desde que seja conhecido o evento de chuva. Inicialmente idealizado para eventos discretos (um pico de chuva resultando em um pico de vazão), rapidamente o método foi difundido para uso mesmo em simulações de eventos contínuos (simulação hidrológica de séries contínuas).

A simplicidade do método reside no ajuste de um único parâmetro representativo das condições hidrológicas da bacia hidrográfica, chamado Curve-Number, ou CN. Este parâmetro é obtido diretamente por tabelas que correlacionam tipo e cobertura do solo, representando uma condição específica da bacia hidrográfica. Felizmente, estes dados são facilmente obtidos por meio de geoprocessamento e obtidos em campo. Infelizmente, as condições para as quais a tabela de CN original foi construída (tempos de retorno dos eventos de vazão e tamanho dos eventos de chuva ou escoamento) não são conhecidas (apesar de que suas atualizações constantes já permitem ter uma ideia destas condições).

Simples de usar, confiável em seus resultados e aceito por toda a comunidade de hidrologia, o método SCS-CN rapidamente se tornou um dos “queridinhos” da hidrologia e vem sendo aplicado desde sua publicação. Lá se vão mais de 50 anos de usos em diferentes bacias, em diferentes climas, em diferentes regiões, em diferentes biomas e com resultados adequados. Então qual o problema que pode existir em usar um método tão difundido? Aqui vão alguns:

  • O sucesso do método é mais influenciado pelo tamanho da bacia hidrográfica e não pela magnitude dos eventos de precipitação;
  • Bacias grandes, com tipos e usos do solo heterogêneos, são representadas com simplificações que levam a eventos simulados pouco aderentes a realidade utilizando o método;
  • A metodologia não é capaz de representar a intensidade de precipitações e sua variação ao longo de um evento de chuva intensa. Em muitos climas, este processo é mais relevante para a geração de escoamento do que as condições do solo;
  • Ele nunca foi idealizado para representar cheias individuais e sim para representar tendências de longo prazo;
  • O CN escolhido para uma bacia é representativo das condições de cobertura do solo consideradas no momento da decisão, refletindo condições particulares de cheias;
  • O método é sensível ao CN e suas condições de umidade antecedentes, principalmente para CNs e volumes de precipitação baixos. Há um ajuste entre o CN estabelecido e a condição de umidade antecedente, o que pode nãos ser realista em todas as bacias hidrográficas;
  • O método é incapaz de representar características hidráulicas da bacia hidrográfica, como a celeridade no escoamento em rios e a presença de banhados e/ou barreiras naturais que alterem a propagação do escoamento na rede de drenagem. Isto resulta em eventos de escoamento que podem superestimar os picos de vazão;

E tem como ficar pior…

Imagine que você possui um empreendimento localizado próximo a um corpo hídrico sob sua responsabilidade. Este empreendimento possui risco de falha caso um evento hidrológico extremo aconteça e provoque inundações na região, gerando o extravasamento do corpo hídrico (escoamento saindo da calha menor e indo para a planície de inundação) próximo a ele. Este é o risco hidrológico ao qual indústrias, residências, plantas de tratamento e/ou geração de energia (dentre outros) estão expostos a cada período chuvoso.

Mesmo casos em que o corpo hídrico não extravasa pode ser problemático. Basta imagina uma barragem (de mineração, abastecimento de água, ou qualquer outra finalidade) que recebe um volume de água superior a sua capacidade. Os eventos extremos de escoamento podem levar a falha da estabilidade estrutural do barramento, resultando em rompimento destas barragens (e sabemos por experiência própria o problema que isso pode causar, basta lembrar os casos de Marina e Brumadinho).

A solução mais segura do ponto de vista hidrológico é conhecer os volumes máximos de precipitações e vazões na região, adotando um risco hidrológico de falha (daí o uso de tempos de retorno específicos) e gerar medidas protetivas contra estes eventos. Estas medidas podem ser diques, barramentos, sistemas de bombeamento, ou mesmo sistemas de extravasamento emergencial (no caso de barragens para acumulação de água). Independente da medida adotada, todas necessitam conhecer o volume de água que deve ser desviado (ou absorvido) para evitar problemas no empreendimento.

O método mais utilizado para estimar estes volumes máximos de escoamento a serem gerenciados é justamente o SCS-CN, com todas as limitações que indicamos anteriormente. Fica claro o risco que o uso irrestrito da metodologia representa agora? Provavelmente os resultados obtidos estarão superdimensionados (pela própria limitação do método), estando a favor da segurança hidrológica. Contudo, isto configura um cenário de investimentos em proteção contra cheias e planos de contingência que podem ser mais custosos do que o necessário. O custo da incerteza no método é pago pelo empreendedor, e muitas vezes repassado ao consumidor final.

A solução existe e não é difícil

A estimativa de eventos de vazão extrema pode ser feita utilizando diversos métodos. O uso do método SCS-CN é atraente pela sua simplicidade e utilização em diversos locais, sob diferentes condições de uso do solo, climatologia e precipitações. Além de simples e confiável, o método é disponibilizado na grande maioria de softwares de modelagem hidrológica, com algoritmos que auxiliam na melhoria de diversas das limitações existentes (ex.: modelo HEC-HMS).

Há formas já consagradas de melhorar a aderência dos resultados do método a eventos reais. Uma avaliação crítica do evento de precipitação utilizado, bem como correções nos picos de vazões estimados, são apenas alguns exemplos que usualmente podem ser empregados para melhorar os resultados mesmo com as limitações do uso de um CN único.

Locais com monitoramento hidrológico permitem ainda que o ajuste do CN seja feito com base em dados observados, considerando eventos hidrológicos extremos diários e/ou anuais. Este ajuste também chamado “tormenta-a-tormenta” ou “cheia-a-cheia” permite que um CN médio seja obtido com base em dados medidos na bacia hidrográfica, e não em uma tabela pré-definida que considera uso e cobertura do solo como uma fotografia única. Estimar CN a partir de dados observados é um campo de estudo particular em si, com diversas fragilidades e melhorias com relação ao uso empregando valores tabelados.

Enquanto soluções técnicas permitem que as limitações do método sejam superadas, nenhuma solução é melhor do que a existência de monitoramento hidrológico consistente. Incertezas são eliminadas apenas na presença de dados. Entendemos que isto pode ser um fator limitante, devido ao elevado custo com programas de monitoramento, mas que não deve ser deixado em segundo plano.

Por último, mas não menos importante, a bacia hidrográfica é a unidade de análise sobre a qual aplicamos o método SCS-CN. Isto torna o desafio de estimar vazões máximas um trabalho ainda mais complexo devido a sua capacidade de adaptação e alteração ao longo do tempo. O desenvolvimento econômico, as mudanças climáticas, a própria cobertura existente influenciam de forma direta no regime de precipitações e vazões observadas em bacias hidrográficas, principalmente em bacias pequenas para as quais o método é mais indicado. Não é incomum que, por exemplo, a série temporal de cobertura do solo em uma bacia hidrográfica apresente características não-homogêneas. Ou seja, a variação pode ser tão brusca ao longo do tempo que cria diferentes cenários hidrológicos. Isto somado a própria não-linearidade das precipitações, torna o uso do método algo ainda mais difícil.

E agora?

Apesar de limitado, não há motivo para pânico e exclusão do método da nossa lista de metodologias. Assim como qualquer metodologia, o importante é entender as limitações impostas pelo seu desenvolvimento e como isto resulta em incertezas nos nossos resultados. Muitas incertezas são gerenciadas com dados medidos em campo. Outras são controladas por meio de análises locais e/ou regionais que permitem entender se os resultados obtidos são adequados dentro do que é esperado na região. Antes de acreditar sem questionamentos nos resultados obtidos, o bom hidrólogo deve no mínimo avaliar se alguma das limitações do método se aplicam a sua região e como contornar elas de forma segura e assertiva.

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