Com frequência passamos por problemas ocasionados pela mudança na disponibilidade de água. Para o consumidor local (como eu), a primeira preocupação é a falta de banho ou água para cozinhar. Para grandes indústrias, pode ser a falta de um insumo nobre para o processo produtivo. Há aqueles ainda que tiram da água o seu principal sustento, e em períodos de estiagem prolongadas, ficam com poucas opções para manter sua sobrevivência.
Por exemplo: Zonas onde antes não havia risco de cheias, podem passar a ser assoladas por enchentes a cada período chuvoso. Zonas onde a vazão escoando em um rio assegura a produção de energia elétrica, podem passar por momentos de crise pois a energia assegurada pelo empreendimento pode não ser atingida ao longo de sua operação. Locais onde águas abundantes e de boa qualidade eram usadas para recreação e pesca, passam a apresentar altos índices de poluição alterando todo o ecossistema aquático.
Este é o problema que enfrentamos: O risco hidrológico ao qual estamos expostos pode mudar ao longo dos anos.
Será tão difícil assim?
Quando pensamos em hidrologia o aspecto temporal é extremamente importante. Com base em dados e análises, o ditado “conhecendo o passado, podemos estimar o futuro” se torna um mantra que nos guia ao coletar, consistir e disponibilizar dados hidrometeorológicos. Contudo, o futuro não é tão simples de prever quanto o lançamento de uma moeda, pois além de não-lineares os processos dependem de fatores que muitas vezes estão fora do nosso controle.
Logo, é virtualmente impossível planejar uma operação estável se ela depende do regime de vazões em rios.
Felizmente, esse tópico vem sendo discutido por diversos pesquisadores, hidrólogos e consultores em todo o mundo. A modelagem hidrológica aplicada a análise de risco hidrológico permite que modelos matemáticos sejam utilizados para gerar cenários futuros e prever vazões com incerteza conhecida e controlada.
Ao se avaliar bacias hidrográficas, dois riscos hidrológicos precisam ser gerenciados para evitar problemas: i) Probabilidade de ocorrência de enchentes de curto prazo com potencial para impactar a vida humana ou propriedades; e ii) Variações sazonais ou decenais na probabilidade de ocorrência de cheias e secas devido alterações na bacia hidrográfica ou no clima.
O gerenciamento destes riscos envolve a previsão de vazões futuras, que por sua vez, depende de diversos dados, como:
- A distribuição espacial de dados de chuva disponíveis;
- A representatividade dos processos hidrológicos pelos modelos matemáticos utilizados;
- Alterações na cobertura da bacia hidrográfica e usos da água;
- Cenários de previsões meteorológicas;
- Algoritmo de previsão de vazões utilizado;
Na sequência são explorados cada um destes pontos em maiores detalhes.
Distribuição espacial da chuva
A distribuição espacial e frequência de dados de chuva é essencial por dois motivos. Primeiro, ela permite que o passado seja caracterizado e uma avaliação regional (em escala de bacia hidrográfica) seja construída. Isto permite estimar os principais eventos de precipitação e, principalmente para eventos de curto prazo, a intensidade da precipitação historicamente observada no local.
A forma mais garantida de obter esta informação é com uso de pluviômetros. Apesar de conterem erros de medição inerentes do equipamento (ou seja, nada é perfeito) os dados obtidos por estes equipamentos permitem que o regime de precipitações seja bem caracterizado em escala local. Diversos pluviômetros espalhados ao longo de uma bacia hidrográfica permitem que toda a variação espacial das chuvas seja conhecida. Desta forma, este equipamento permite que o dado de chuva seja monitorado, conhecido e analisado de forma robusta, permitindo caracterizar o regime de precipitações que ocorre na região onde o risco hidrológico é avaliado.
Atualmente, radares e satélites também geram informações espacializadas em bacias hidrográficas, permitindo que dados sejam obtidos de forma remota em escritório. Este conjunto de dados se utiliza de informações monitoradas para gerar estimativas de precipitação robustas e assertivas. Outra forma de análise é o uso de NWP (do inglês, Numerical Weather Predictions) que numa tradução literal seria previsões climáticas numéricas. Esta técnica consiste no uso de modelos de circulação globais refinados para diferentes regiões e que geram dados importantes sobre a precipitação em bacias hidrográficas por meio de modelagem matemática aplicada a meteorologia.
A intensidade da chuva e como isto pode ser avaliado com maiores detalhes, vou deixar para uma outra publicação.
Modelo hidrológico
A escolha do modelo hidrológico em si já é um ponto de incerteza relevante para análise de risco hidrológico. Alguns profissionais defendem inclusive que o próprio modelo deve ser considerado na análise, inserindo uma variável a mais na estimativa de risco. Os modelos matemáticos, como representações da realidade, possuem limitações que podem interferir na previsão de cenários hidrológicos futuros devido a forma como eles representam processos hidrológicos por meio de representações matemáticas e soluções numéricas.
A melhor forma de lidar com esta situação é dedicar um esforço grande ao processo de calibração e validação do modelo matemático escolhido, entendendo sua capacidade de representar tanto os processos de curto prazo quanto os de longo prazo. Por se tratar de uma representação da realidade, com limitações e incertezas inerentes a sua concepção, o ideal é que este processo seja feito com foco no objetivo final da análise de risco. Em outras palavras, se o risco hidrológico a ser avaliado é de curto prazo, os esforços na etapa de calibração e validação devem ter como foco a representatividade do modelo para fenômenos observados de curto prazo (cheias e secas extremas). Do contrário, os esforços nestas etapas devem ter como foco a representatividade de modelo para comportamentos sazonais e decanais (variabilidade hídrica, cenários hidrológicos e tendências).
Desenvolvimento econômico regional
O ritmo de crescimento populacional e o desenvolvimento econômico regional impactam como o risco hidrológico é analisado. Bacias hidrográficas com grandes florestas, convertidas para campos pelo desenvolvimento de agricultura e pecuária, por exemplo, alteram o regime de vazões criando extremos ou alterando o regime sazonal e a disponibilidade hídrica da região. Adicionalmente, o desenvolvimento de grandes polos industriais e municipais alteram a pressão por usos da água necessitando de maior quantidade e qualidade para manutenção deste crescimento. Desta forma, estimar cenários hidrológicos futuros passa por entender como a bacia hidrográfica está se desenvolvendo e como isto impacta a disponibilidade hídrica.
Uma vez que a bacia hidrográfica, como unidade de gestão de recursos hídricos, possui uma área extensa e muitas vezes heterogênea, a tomada de decisão com base no desenvolvimento econômico traz um fator de incerteza que é virtualmente impossível de se prever. Por mais que comitês de bacia hidrográfica e órgãos gestores se reúnam e planejem em harmonia, mudanças sociais e políticas podem levar a alterações no planejamento de longo prazo transformando a tomada de decisão em planejamentos de curto prazo. Do ponto de vista empresarial isto é caótico e resulta em um risco hidrológico elevado para decidir sobre investimentos e retornos obtidos por eles.
Estas alterações na bacia hidrográfica impactam o risco hidrológico futuro nos dois casos citados anteriormente, alterando a ocorrência de eventos extremos e impactando o regime hidrológico sazonal e decanal. O efeito sinérgico entre desenvolvimento econômico e mudanças climáticas traz uma dimensão ainda mais desafiadora para a concepção e análise de risco hidrológico.
Previsões meteorológicas
Atualmente o ritmo acelerado de mudanças climáticas causam anomalias que refletem diretamente no regime de precipitações. Alguns locais podem sofrer com a redução da precipitação direta sobre o solo, outros podem sofrer com o aumento da evaporação (ou evapotranspiração) de água na superfície, e em alguns casos, há tendências que o aumento nas intensidades dos eventos pluviométricos pode levar a um cenário hidrológico com anos onde se observa menos dias de chuva, mas com maior volume precipitado anual. Toda esta incerteza hidrológica combinada com os diferentes cenários de desenvolvimento econômico possíveis criam um problema para se avaliar o risco hidrológico em cenários futuros.
Quanto maior o tempo de antecedência da previsão, mais incerto é seu resultado. Isto significa que olhar para o futuro com um horizonte de planejamento grande pode gerar decisões e discussões que serão alteradas num curto prazo. Previsões de curto prazo são interessantes para controle de inundações, navegação, irrigação, abastecimento de água e geração de energia. Previsões de longo prazo são interessantes para planejamento de preços da energia hidrelétrica, produção agrícola e gerenciamento de conflitos por usos da água.
As incertezas nas previsões futuras são inerentes aos modelos climáticas globais e regionais. As incertezas nas previsões surgem a partir das condições iniciais e de contorno das simulações, processos representados nos modelos, características regionais e locais do terreno, a resolução espacial dos modelos e os algoritmos de downscalling considerados. Estas características resultam em grandes incertezas nas projeções de precipitação, tanto em magnitude quanto em variabilidade e padrões sazonais. Para compreender as incertezas e gerar cenários futuros de maior confiança diversos sistemas de previsão usam conjuntos de modelo, também conhecido com ensembles.
Considerar um ensemble de modelos diferentes (multimodel ensemble) ou realizar uma geração estocástica de cenários futuros com base num mesmo modelo (perturbed physics ensemble) é o que nos permite melhorar cada vez mais as estimativas futuras de disponibilidade hídrica. O uso de dados monitorados na região de interesse também ajuda a remover o viés das previsões, reduzindo cada vez mais a incerteza nos cenários futuros previstos.
Compreender os possíveis cenários futuros simplifica a análise de risco hidrológico e gera cenários relativos onde o planejamento e a tomada de decisão podem ser feitos de forma mais robusta e confiável. O desafio é aprender a lidar com risco e limites de confiança, e não com valores absolutos.
Algoritmos de previsão
Entender os padrões de precipitação históricos, escolher cuidadosamente os modelos hidrológicos utilizados, compreender a dinâmica de desenvolvimento regional e identificar as incertezas existentes nas previsões meteorológicas locais resulta em um último ponto de atenção quando lidamos com modelagem de risco hidrológico: como será montado o modelo ou a análise de previsão futura.
Atualmente, modelos de dados (data models) estão se popularizando e é comum ver ajustes de previsões futuras se baseando apenas em precipitação e vazão monitorados em um determinado local. Independente do uso de modelos de dados ou de modelos com base física, modelar o risco hidrológico futuro depende de como o sistema/análise de previsão é realizado. Ter a disposição dados com qualidade (consistidos e disponibilizados em alta frequência) permite que sistemas de previsão atuem com atualização quase em tempo real, assimilando novos dados, ajustando resultados do modelo hidrológico e incorporando novas informações nas novas previsões realizadas. É importante lembrar que sempre que um novo conjunto de dados é disponibilizado, com volume de informações suficientes para representar melhor os eventos hidrológicos, novas previsões são criadas.
E como decidir se tudo é incerto?
O risco é a materialização da incerteza. Devemos investir esforços em qualificar nossas previsões ao estimar incertezas nos impactos das mudanças hidrológicas previstas. Desta forma, começamos a olhar não para as mudanças climáticas ou anomalias previstas, mas sim para o risco de ser observado um certo nível de impacto em vazões máximas, mínimas ou na disponibilidade hídrica futura.
A tomada de decisão (e o gerenciamento) se torna mais simples quando consideramos se é aceitável ou não o risco que vamos correr o futuro. A alternativa, que é planejar e gerenciar com base em múltiplos cenários futuros e múltiplas simulações, pode gerar mais indecisão e incerteza dificultando a buscar por estabilidade no dia a dia.
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