Numa postagem anterior comentei sobre a disponibilidade hídrica, esclarecendo como ela é importante para os usos integrados da água em uma bacia hidrográfica. Vou aprofundar um pouco a discussão no contexto do como quantificar a disponibilidade hídrica em um determinado trecho de rio, ou bacia hidrográfica.
O leito do rio, aquilo que pisamos ao entrar nele, é quem define as condições do escoamento por meio da sua forma e por algo chamado “rugosidade”. A rugosidade é a capacidade que o leito tem de frear o escoamento, ou seja, ele consegue reduzir a velocidade da água passando no rio. A forma de uma seção transversal de rio e sua rugosidade variam naturalmente (ou devido a ação do homem) ao longo do tempo. Eventos de enchentes podem alterar estas seções. Normalmente, os rios possuem trechos de inundação (planícies de inundação) que ocorrem quando eventos de cheias são observados.
Para determinar quanto de água passa numa seção de rio, e posteriormente entender a sua disponibilidade hídrica, a ação mais comum é a medição de vazões nesses rios. Geralmente é composta por um equipamento que mede a corrente no rio em diversos pontos de sua seção. Alguns exemplos conhecidos são o molinete hidrométrico e mais recentemente o ADCP. A medição de vazão ocorre por meio de campanhas de campo que mobilizam equipes especializadas, acessando trechos de rios que nem sempre possuem acesso fácil. Além disso, para medir vazão corretamente é necessário controlar possíveis variações no leito do rio e em sua rugosidade. Logo, o procedimento para medição de vazões em rios não é uma tarefa trivial, sendo necessário uma organização e tempo para produzir resultados.
Uma vez que medições de vazões não podem ser contínuas, a alternativa encontrada foi estimar vazões por alguma outra variável, que pudesse ser monitorada de forma mais fácil. Nesse contexto, utiliza-se uma relação entre o nível de água numa determinada seção de rio e a vazão medida nesse rio. Essa relação, conhecida como curva cota-descarga ou curva-chave, é o instrumento mais importante na análise de eventos hidrológicos e na avaliação de disponibilidade hídrica. Ele permite estimar uma variável de difícil obtenção em condições reais (vazão) por meio de uma variável de fácil obtenção em condições reais (nível), sendo necessário apenas um instrumento, conhecido como régua linimétrica. Para exemplificar a importância desta relação, salva as devidas proporções, imagine que é como apertar um botão na cozinha e ter um jantar servido, ou pensar em ir na academia e ser transportado até lá sem esforço.
A curva-chave é uma solução ou um problema
A construção de uma relação entre vazões (dados de difícil obtenção) e níveis (dados de simples obtenção) elucida questionamentos referentes a quanto de água passa numa seção de rio. Contudo, assim como qualquer elemento da nossa vida, a relação entre níveis e vazões possui incertezas. Como mencionei anteriormente, alterações no leito do rio devido a ações antrópicas (dragagem, navegação, lazer, etc) e a processos naturais (deposição e erosão) podem levar a alterações na relação entre nível e vazão nessa seção. Mesmo quando alterações no leito não são identificadas, a relação entre níveis e vazões ainda pode sofrer alterações devido a condições hidráulicas, como remansos ou refluxos hidráulicos.
Acreditando que todos estes elementos colaborem para a construção de uma boa curva-chave, ainda há um pequeno obstáculo que muitas vezes é identificado ao trabalhar com disponibilidade hídrica: a extrapolação da curva-chave. Imagine que é virtualmente impossível que uma equipe em campo consiga medir vazões em todos os eventos mais extremos. No caso de enchentes, a logística de acesso aos pontos de medição se torna impossível (basta imaginar uma cidade sofrendo inundações, ninguém deveria estar próximo ao rio neste momento). No caso de secas, os equipamentos muitas vezes não conseguem realizar as medições corretamente. Logo, é comum o emprego de técnicas para extrapolar os pontos de uma curva-chave, tanto para valores máximos (cheias) quanto para valores mínimos (secas). Este procedimento, apesar de válido e aceito tecnicamente, impõe uma incerteza associada ao método que dificulta as análises de disponibilidade hídrica em rios, e por consequência, em bacias hidrográficas como um todo.
O que pode ser feito?
A disponibilidade hídrica é importante para equilibrar os usos múltiplos que as águas possuem dentro de uma sociedade (exemplos: irrigação, abastecimento, navegação, lançamento de efluentes, lazer, etc). Quantificar a disponibilidade hídrica em rios é uma tarefa complexa e envolve um procedimento conhecido como construção de curva-chave. A curva-chave, por sua vez, possui incertezas que dificultam a real determinação da quantidade de água que está disponível nos rios, dificultando o balanceamento dos múltiplos usos que podem existir para esta água.
Tecnicamente, a ANA dispõe de regulações e manuais que auxiliam no processo de construção, análise e verificação de curvas-chave e ajudam a controlar a incerteza que este instrumento possui. Estas técnicas não eliminam completamente a incerteza existente na determinação da curva-chave, mas atenuam e permitem o controle da incerteza existente.
Uma vez que há uma incerteza associada a determinação de vazões em rios, que dificulta a estimativa da disponibilidade hídrica em rios e bacias hidrográficas de forma assertiva, a gestão dos conflitos resultante dos múltiplos usos da água se torna essencial. A existência de comitês, órgãos gestores e a presença da sociedade na tomada de decisão é um caminho possível e que gera bons resultados para gestão de usos e sustentabilidade de recursos hídricos (quando não há brigas mesquinhas na tomada de decisão). As decisões tomadas respeitando as limitações e incertezas na quantificação da disponibilidade hídrica, e entendendo a prioridade dos usos existentes, permite que o nosso recurso mais valioso (a água) possa ser utilizado de forma sustentável e contínua por todos.
Conheça nossas postagens!
Conheça nosso blog ou navegue pelas postagens.
Como me adaptar as mudanças climáticas?
É possível se adaptar e mitigar prejuízos decorrentes de mudanças climáticas com o planejamento correto.
O controle de cheias no rio Taquari pode ser feito por barragens?
O controle de inundações em bacias hidrográficas pode ser feito com barragens de controle de nível. Contudo, nem sempre esta é a melhor solução.
Estamos errados ao estimar um CN?
Estimar um CN único pode levar a incertezas na geração de vazões máximas, prejudicando a elaboração de alternativas viáveis de segurança hídrica.